Polêmico, cult, soberbo e inovador... esse é Pedro Almodóvar Caballero, o enigmático cineasta espanhol que surpreende a cada nova obra e formidavelmente nos apresenta, insere, instiga e nos convida à analisar os mais diversos temas.
Almodóvar nasceu no dia 24 de setembro de 1949 na cidade de Calzada de Calatrava, na província de La Mancha na Espanha. No ano de 1968 no auge da ditadura do general Franco, ele com então 19 anos partiu para capital espanhola, onde trabalhou como funcionário de uma agência telefônica, cartunista, cantor e ator.
Sem dinheiro para custear uma faculdade e apaixonado por cinema, Almodóvar comprou sua primeira câmera 8mm em 1973 quando iniciou suas práticas cinematográficas e a produção de curtas metragens.
A sua primeira obra de destaque fora da Espanha foi Pepi, Luci, Bom e outras garotas de montão (1980) uma obra feminista e provocante que conquistou a opinião crítica e colocou Almodóvar em evidência.
Em seguir foram lançados Labirinto de paixões (1982), Maus Hábitos (1983), O que eu fiz para merecer isso (1984), Trailer para amantes do proibido - não lançado no Brasil (1985), Matador (1986) e Lei do desejo (1987). Estas obras compreendem aquela que os analistas denominam de primeira fase do cineasta, que coincide com a época da La Movida madrilenha (movimento contra-cultural da Espanha pós-franquista).
A segunda fase de produção de Almodóvar, consiste no período de consagração internacional do cineasta e que iniciou em 1988.
Em 1988 Almodóvar lançou a comédia dramática Mulheres a beira de um ataque de nervos, seu primeiro grande sucesso internacional.
Em seguida o cineasta lançou ¡Átame! (1990), um suspense romântico que rompeu com a tática almodovariana de utilizar vários contextos em um enredo e fixou somente no cenário proposto. A obra foi seguida por De salto alto (1991), Kika (1993) e A flor do meu segredo (1995).
Em 1997 iniciou a terceira fase da carreira de Almodóvar, período em que compreende as obras-primas do cineasta, onde ele alcançou o êxtase produtivo.
Esse período inicia com Carne trêmula (1997) e é seguido por Tudo sobre minha mãe (1999), Fale com ela (2002), Má educação (2004), Volver (2006), Abraços Partidos e A vereadora antropófaga (2009) e A pele que eu habito (2011).
As obras Tudo sobre minha mãe e Fale com ela, consideradas as obras-primas de Almodóvar foram responsáveis pelas mais importantes premiações recebidas por ele, sendo que Tudo sobre minha mãe foi vencedor da categoria melhor filme estrangeiro nas premiações do Globo de Ouro e Oscar de 1999 e Fale com ela recebeu o Oscar de melhor roteiro original e o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro de 2002.
A MENTE DE UM GÊNIO - um mergulho no universo almodovariano
Almodóvar é um cineasta que basicamente cria um cinema de cenários e diálogos. O feminismo sempre se mostrou nas obras de Almodóvar, sendo que de maneira evolutiva tornou-se característico de suas obras.
Suas obras trazem temáticas diversas envoltas em segundo plano seja pela ambiguidade sexual de seus personagens, pelo jogo de aparências entre os gêneros, relações interpessoais de extrema carga afetiva, apropriação pela mulher de atitudes masculinas e vice-versa ou pela questão do desejo (muitas vezes transcendente e exacerbado).
Os enredos de suas obras são dotados de polissemia e sempre trazem em suas narrativas referências à temas polêmicos como pedofilia, estupro, incesto, traições e homicídios.
Influenciado pelo estilo de Buñel, de quem é fã, Almodóvar recria um universo colorido e multifacetado.
Esteticamente suas obras são caracterizadas pela combinação do universo de personagens e situações exacerbadas com ambientes kitsch, ao som de antigos boleros.
As cores fortes, tanto nos elementos dos cenários quanto nos figurinos, utilizando principalmente o vermelho – que, em consonância com a cultura espanhola, remete a paixão, sangue, fogo – tornam-se estratégias plásticas que ajudam a compor a estética cômica/melodramática da maioria de seus filmes (são as chamadas cores de Almodóvar).
A virtual incongruência estética de Almodóvar paradoxalmente é a chave de sua genialidade. Cenários impregnados de cores vibrantes (o vermelho é sua cor fetiche), figurinos extravagantes, personagens caricatos e trilha sonora deliciosamente brega traduzem a grife almodovariana.
sobre as obras:
Almodóvar iniciou sua carreira durante o período franquista na Espanha, produzindo curtas metragens que são de difícil acesso atualmente, mas que revela um Almodóvar não tão preocupado com a construção da cena, como lhe é característico.
Em Salomé (1978) uma adaptação da célebre obra do inglês Oscar Wilde, nota-se uma construção cênica pobre e sem as famosas cores almodovariana. O filme trata-se de uma conjunção e fratura de épocas (inserção de elementos de períodos distintos em um contexto) e disserta sobre a história de Isaac do Antigo testamento, nele Almodóvar ainda não possuía a prática de se preocupar com a construção dramática da cena, muitas vezes tida como característica vital de sua obra .
Pepi, Luci, Bom e outras garotas de montão seu primeiro longa, consiste numa narrativa sobre três mulheres diferentes interligadas entre si de alguma maneira.
O enredo traz as aventuras praticadas pelas personagens em esboços. Pepi é uma vítima de estupro em busca de vingança, Luci uma dona de casa masoquista e Bom uma cantora de punk lésbica.
Esse filme decisivo para o cineasta, marca a introdução de Almodóvar em temas polêmicos, causando espanto pela famosa cena em que Bom urina em Luci durante um ato sexual lésbico.
Em A lei do desejo, ele demonstra a polivalência de seu cinema ao narrar a história de um diretor de teatro se envolve com um rapaz sexualmente indeciso - Antonio Bandeiras -, enquanto dirige uma peça a ser estrelada pela irmã transexual (que mudou de sexo para manter relações com seu pai), enquanto disserta sobre relações familiares, incesto, questões psicológicas e valores morais.
Em Kika Almodóvar polemiza ao retratar como a vida de Kika é transformada drasticamente após um estupro. A obra traz de maneira implícita um panorama sobre as leis penais (retomada em A pele que habito), sobre relacionamentos extraconjugais e fidelidade além de uma ferrenha crítica à intervenção midiática.
Na sua obra prima Tudo sobre minha mãe, o cineasta adentra no universo dramático narrando sobre o infortúnio de uma mãe que perde o filho e sua busca alucinante pelo pai do garoto. Mais uma vez Almodóvar encanta ao retratar temas polêmicos como Aids, religião, existencialismo e identidade sexual.
O também aclamado Fale com ela, retrata a melancólica cena de dois homens que esperam ansiosos suas amadas despertarem de um coma. Este filme cheio de nuances, reviravoltas e histórias que se entrecruzam, combina elementos de dança moderna e do cinema mudo, com uma narrativa que envolve coincidência e destino.
Em Má educação, Almodóvar retoma o tema proposto em Maus hábitos anteriormente e recebe altas críticas. Dissertando sobre a moralidade religiosa, a homossexualidade, prostituição e pedofilia ele atinge o ápice da polêmica e propõe a revisão de valores.
Em Abraços Partidos, talvez sua mais complexa obra (ou pelo menos em minha opinião) Almodóvar recorre à tática de apresentar uma estrutura fragmentada, enigmática, misturando passado e presente e filme dentro de um filme. Consiste numa homenagem ao cinema, onde ele aborda de maneira singela os desfechos e acontecimentos inesperados da vida.
Por fim A pele que eu habito lançado em 2011, retratou um cirurgião plástico obcecado pela criação da pele perfeita e por sua mulher. Trata-se basicamente de uma indagação sobre a ética e um discurso sobre amores platônicos e sobre a liquidez e busca por conhecimento.
Almodóvar é conhecido por suas predileções no que se diz respeito à escolha de atrizes e atores, dentre suas musas estão Carmem Maura, Marisa Paredes, Penélope Cruz, Rossy de Palma e Chus Lampreave e seu ator preferido é Antonio Bandeiras.
um suspiro contra hipocrisia
Assumidamente gay, Almodóvar aborda a temática de orientação sexual em muitas de suas obras como Pepi, Luci, Bom e outras garotas de montão, Labirintos de Paixões, A lei do desejo (onde retrata a vivência entre irmãos, um gay e o outro transsexual) e Má educação.
Além disso, o cineasta tem assuntos recorrentes em suas obras como o estupro (abordado em Kika, Fale com ela, O que eu fiz para merecer isto? e Má educação), homicídio (presente em Volver, Matador, Carne trêmula, O que eu fiz para merecer isto?, Má educação, A lei do desejo e Kika), o incesto (A lei do desejo, Kika e Volver), além da crítica aos valores da Igreja (Maus hábitos e Má educação).
De uma maneira descontraída e ambivalente, Almodóvar desconstrói o grotesco explicando-o. Utilizando perversões, exuberâncias e descontroles ele demonstra e denuncia as imoralidades, os abusos e as falsidades que a sociedade alimenta sob a égide da hipocrisia e do discurso do impróprio e importuno.